CRACOLÂNDIA



CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL
51ª Assembleia Geral
Aparecida-SP, 10 a 19 de abril de 2013
69/51ª AG(Sub)
CRACOLÂNDIA
Saúdo com alegria, gratidão e emoção a cada irmão Bispo, presença de Jesus Bom Pastor, com suas Dioceses e o povo que Deus vos e nos entregou.
Eu sou Padre Renato Chiera, missionário fidei donum, italiano do Piemonte, com quase 71 anos de vida, 46 de sacerdócio, há 35 anos brasileiro de adoção, chamado por Deus na querida e sofrida Baixada Fluminense, Diocese de Nova Iguaçu.
Com apenas oito anos, queria ser como dom Bosco, mas não sabia o que isso significasse. Alguns acontecimentos me iluminaram. Era pároco num lugar muito violento. Um adolescente que tinha sido acolhido na minha casa foi assassinado na porta da igreja; outro adolescente marcado para morrer veio me pedir ajuda: “Eu não quero morrer”. Senti-me chamado á entrar como Jesus no drama destes filhos do Brasil. Nasceu a Casa do Menor numa garagem, para ser presença de Deus Pai e Mãe para quem não se sente filho. Hoje a Casa do Menor está espalhada por vários estados do Brasil, em várias Dioceses de Bispos aqui presentes. Já resgatamos milhares de crianças de 0 a 18 anos e profissionalizamos cerca de 45.000 adolescentes e jovens.
Aos poucos, orientados por Bispos e Padres amigos, descobrimos que Deus nos escolheu para dar uma humilde, mas eficaz resposta aos gritos de tantos filhos do Brasil e do mundo, rejeitados, em situação de rua e de abandono, candidatos á prostituição, á violência, ao narcotráfico, ás drogas e agora ao crack. Condenados á matar e á serem mortos, perante o silencio dos adultos e de uma sociedade, tão desesperada e perdida, que aceita como normal e inevitável que suas crianças sejam assassinadas.
Ao redor dos meninos, nasceu um grupo de ex-meninos de rua, que, renovados pelo Evangelho e pelo Amor, queriam ser pais dos abandonados, e se consagrar á Deus para esta missão.
A Igreja, através do meu Bispo dom Luciano Bergamin e seu presbitério, nos reconheceu como associação de leigos com o nome Familia-Vida, confirmando o nosso pequeno carisma de sermos família entre nós para ser e dar a Presença de Deus Pai e Mãe, -familia, á meninas e meninos não amados. Descobrimos que a Palavra vivida cura e transforma.
Fomos e somos atraídos sempre mais por Jesus crucificado e abandonado, que tem o rosto destes meninos e jovens. Ouvimos muitos gritos, por fome, casa, escola, familia, trabalho, futuro, mas descobrimos logo que o clamor mais profundo é por ser filho, pela presença de alguém que os ame. Nasceu assim uma pedagogia original, Pedagogia Presença, ou Pedagogia dos Não Amados.
Há quase dois anos fomos chamados a entrar no mundo das cracolândias e do crack. Foi um usuário de drogas que me introduziu neste mundo. “Bem vindos ao Inferno”, estava escrito na entrada da cracolândia de Manguinhos (periferia de Rio) que visitamos. Entramos numa praça grande, cheia de lixo, poças de água podre, ratos, porcos, misturados a uma multidão de seres humanos de 7 á 79 anos, de várias camadas sociais e de todas as igrejas e religiões; sombras vagantes, alguns quase esqueletos; olhos fundos, corpos magros e
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fedorentos, com profundas feridas; deitados no meio do lixo ou abaixo dum plástico, para se proteger da chuva ou do sol.
Entrei na cracolândia de túnica branca para ser reconhecido e por maior segurança. Olhavam-me admirados: “Aqui só entra a policia para dar tiros...”. Pedem a benção, se ajoelham, esperam comida, dinheiro, curativos, mostram suas feridas do corpo, do coração e da alma. Me parece de estar num cemitério de vivos, que esperam a morte e se juntam para superar solidão, rejeições, perdas, abandonos e se consolam queimando pedras até morrer.
Um ex-chefe do comando vermelho me explicava: “Inventamos a cracolândia, pois precisamos de espaços para nos sentir família entre nós. Aqui podemos usar nossa pedra em paz e somos todos iguais”.
Não é o crack que mata, mas sim a falta de amor e de oportunidades. Confiam-me histórias terríveis. Vale para pobres e ricos, que também são pobres de amor.
O Governo, com a intenção de tirá-los do crack ou de escondê-los, usa métodos violentos com quem já foi tão violentado. Não são criminosos, mas doentes, excluídos em mil formas, rejeitados, fruto e retrato de uma sociedade profundamente quebrada e excludente. Percebemos logo que a descoberta feita em tantos anos ao lado dos meninos é valida também na Cracolândia. A maior tragédia não é ser pobres, é não ser filhos.
Nossas visitas se tornam mais frequentes e todas quartas feiras estamos com eles.
“Padre, trouxe comida?” me perguntam num domingo em que foi cumprimentá-los antes de uma minha viagem. “Não tenho” – “Não importa, o importante é que você veio”. Quarta feira passada foi visitá-los após um mês de ausência. Um homem me confia: “Sua presença aqui é o melhor remédio para nós”.
“Porque você me trata como ser humano?” me pergunta de repente Francisca, maranhense, abusada pelo pai com 11 anos, agora grávida por um policial e acolhida na minha casa. “Eu nunca fui tratada como ser humano. Eu sou lixo. Nós mulheres na cracolândia somos usadas pela polícia, pelos traficantes e pelos cracudos. Isso porque precisamos da maldita pedra, inventada pelo diabo. Quase todas engravidamos e perdemos nossos bebês. Nascem prematuros, ainda vivos, choram um pouco e morrem. Os colocamos num saquinho e os jogamos no lixo. É assim, Padre. Aqui não tem médico, nem maternidade”. Volta a insistir: “Porque você me trata assim?” – “Porque você é Jesus”. Após longo silencio: “Como você se chama?” - “Renato” - “Meu filho se chamará Renatinho”. Renatinho nasceu, mas a droga é mais forte do que o instinto de maternidade e “Chica” muitas vezes abandona o filho para ir á cracolândia.
Já são muitos que nos pediram de sair. Não precisa recolher, deve-se acolher. Faltam-nos, porém, vagas e comunidades terapêuticas. De repente a cracolândia de Manguinhos é ocupada com ação de guerra (se diz “pacificada”) e a praça fica vazia e entram as dragas para limpeza geral. Caçar não é resolver. Precisa tratar e curar. Encontramos um grupo de nossos amigos na nova cracolândia improvisada na Avenida Brasil e na estrada que leva ao aeroporto. Agora a visibilidade é muito maior.
O nosso grupo aumenta. Se unem católicos e alguns evangélicos. Algumas assistentes sociais da Prefeitura nos observam de longe: “Como vocês fazem a se aproximar deles? Eles fogem de nós” – “Precisa amá-los, não apenas querer tirá-los daqui”.
O tratamento precisa ter em primeiro momento um tempo de desintoxicação, depois comunidades terapêuticas com uma metodologia que cura dentro. Não é suficiente tirar das drogas, é necessário oferecer alternativas reais. Precisa reintegrar e responder ás necessidades de cada usuário. Esta batalha precisa de redes e parcerias com todos. Dom Orani conclama no começo entidades católicas, para juntas apontar respostas e esta rede já oferece ajudas concretas para acolher usuários que querem sair. Será o legado para JMJ.
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Decidi de passar uma noite com eles na cracolândia para assumir como esponja suas vidas. Foi uma noite pascoal de sábado para domingo: descer aos ínferos para levar o Ressuscitado. Quando chego com um colchão e minha túnica, muitos levantam a cabeça do crack: “Padre, você vai passar mesmo a noite conosco? Você nos ama de verdade”.
Minha tenda improvisada se torna espaço sagrado. Muitos vêm pedir um terço ou um crucifixo, chorar, desabafar e se confessar. Ouço gritos de brigas e cantos de uma profunda melancolia e me parecem os cantos do povo hebreu, no Rio-Babilonia, que clamam por libertação. Um adolescente se deita ao meu lado. “Quando vi o senhor entrar na cracolândia, senti que era Jesus que vinha me tirar daqui. Deixe-me ficar com o senhor, pois esta noite não quero usar crack e amanhã vou á Casa do Menor”. Um homem que vende crack quer uma benção e um crucifixo, que coloca logo no pescoço. Traz pendurando também três chupetas: “São lembranças dos meus três filhos que abandonei pelo crack após ter perdido o trabalho”.
Este lugar de morte me parece grávido de Deus e me sinto como numa catedral em adoração á hóstias vivas e sangrentas. Ao raiar do sol, uma voz se levanta: “Padre, nós dê Deus e a sua Palavra. Só assim conseguiremos sair daqui”.
Enquanto entro no carro, um jovem me oferece dois pães com mortadela e uma garrafa de guaraná, renunciou ao crack para me comprar o café.
Ao pedido do desembargador Siro Darlan, envio um relatório á Ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosario. Pergunto: “O que aconteceria se o Brasil e o Rio de Janeiro tratassem seus cachorros como se faz com os usuários de Crack, caçados e recolhidos em modernos leprosários? O mundo inteiro e organismos de defesas dos animais denunciariam com força tamanha barbaridade. Pena que os cracudos não são cachorros; são apenas seres humanos”.
O Governo custa a entender que o problema do crack precisa de uma ação conjunta da sociedade, igrejas, escolas, famílias, entidades. Resiste a estender a mão á comunidades terapêuticas, onde a dimensão religiosa é determinante na recuperação. Porém, não tem experiências alternativas eficazes, sobretudo com crianças e adolescentes; agora começa a fazer parcerias. A mesma coisa confidenciava-me uma funcionaria do Governo do Ceará.
Sinto que a nossa responsabilidade como Casa do Menor, que trabalha com o mundo infanto-juvenil, é muito grande e que Deus espera respostas rápidas. Assinamos ultimamente convênios com o Estado do Rio, Alagoas e esperamos em breve com Ceará-Fortaleza. Muitas Dioceses nos esperam, o Governo tem o dinheiro (4 bilhões) e nós a vocação, a mística e uma proposta humilde, mas eficaz.
Seria uma pena que o Governo do Rio perdesse a oportunidade de apontar um modelo e uma proposta de saída á esta tragédia e epidemia do século, que já atinge todo o Brasil e a maioria dos Municípios, também do interior. Sem isso, ficaria a triste impressão que o Rio quer apenas fazer uma maquiagem da Cidade Maravilhosa para os grandes eventos que projetarão o Brasil á nível mundial.
Crack: é possível vencer juntos, embora seja difícil.
Entregamos hoje nossa experiência á Igreja do Brasil, na espera de uma confirmação e encorajamento. Se sonhamos juntos, o sonho se torna realidade.
Obrigado pela vossa escuta amorosa.
Enfim um pedido.
São meus meninos que pedem com força e clamam pela vinda do Papa Francisco na Casa do Menor,na sofrida e querida baixada fluminense.
Escreveram numa breve cartinha:
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Sabemos que nosso padre Renato vai falar a nome nosso aos bispos de todo Brasil.
Nos ajudem a convidar o Papa a vir até nós ou pelo menos a se encontrar com todos os meninos feridos como nós. O Papa escuta os bispos, se pedirem juntos isso. Não merecemos muito, pois somos levados, mas o Papa é como Jesus que ama todos. Ele gosta dos meninos de rua e será feliz em nos encontrar. Ele terá muitos compromissos, mas encontrará sem falta um tempinho para nós. Precisamos sentir o seu amor de Pai. Nos ajudem por favor. Vir ao Rio sem encontrar os meninos é como ir a Roma sem ver o Papa. Estamos pedindo a nossa Senhora Aparecida de tocar seu coração.

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