VOCACIONADOS A TRANSMITIR MISERICÓRDIA
Somos sabedores de que o termo
latino vocare (traduzido por vocação)
significa chamado. Para nós, que temos fé, esta dimensão vocacional possui por
origem o próprio Deus; é Ele quem chama. E chama para que? Chama quem? Deus
chama o homem para si, na perspectiva de corresponder ao amor que Ele tanto
devota à pessoa humana. Somos, portanto, vocacionados por Deus para o amor;
para, experimentando a predileção divina por nós, sermos transmissores seus
para o mundo.
No entanto, engana-se quem pensar
que tal verdade seja tão generalizada que não diga respeito à particularidade
de cada um. Fomos criados para o amor, individualmente. E, para perfazer este caminho-meta,
(tal como se caracteriza o amor), Deus possui um plano especial para a vida de
cada um de nós, para que, no assentimento a esta divina vontade sejamos felizes
à medida que fazemos outras pessoas felizes, de igual modo ou superiormente a
nós. São as vocações específicas às quais somos chamados a partir do desígnio
de Deus unido ao querer e a disponibilidade de quem é chamado, formando um belo
conjunto denominado ‘mistério vocacional’, que vai se desvelando à medida do
tempo até o nosso encontro definitivo com Ele.
E o meu leitor pode se
questionar: o título deste texto corrobora com o seu corpo? Engana-se
tremendamente quem pensar que exista alguma diferença entre amor e
misericórdia, principalmente no mundo em que estamos, onde o termo amor desgasta-se
estupendamente. Somos chamados, vocacionados por Deus, para transmitirmos o
amor; isso é fato. Mas, de que tipo? O mundano? Não. O puramente humano?
Absolutamente negativo. O das paixões? Também não. Somos chamados por Deus a
transmitir o Seu amor, que se caracteriza pela pureza, e a partir deste
qualitativo, se derivam tantos outros, que perpassam, inclusive, pelo
desinteresse de banalidades na simples atitude de amar. Isto é ser, em linhas
gerais, ‘missionários da misericórdia’, ou seja, do amor de Deus.
O Papa Francisco tem um livro que
se tornou best-seller: “O Rosto de Deus é Misericórdia”. Este escrito não trata apenas
do amor de Deus de maneira desencarnada das realidades e das diversas situações
em que o homem está imbuído. Porém, tratando de como o homem pode ser porta-voz
do amor de Deus, o Papa nos deixa livres quanto à criatividade de, praticando o
amor, irradiarmos a misericórdia divina. Assim, não importando a vocação
específica para a qual Deus nos chama – se à vida sacerdotal ou religiosa, ou à
vida matrimonial na constituição de uma família, ou mesmo como leigo na vida da
Igreja – o ato de sermos transmissores do amor divino faz-se um imperativo do
qual é impossível se escusar, pondo em sérios riscos a fidelidade na
correspondência ao Senhor que nos chama.
O amor não é somente um fim a ser
alcançado, seja como resposta dada ao coração de Deus, seja na vida daquele a
quem Deus me confiou os cuidados. O amor é também meio. É a força propulsora
que nos faz seguir adiante, mesmo quando das dificuldades e fracassos.
Desculpe-me o trocadilho: se não for a nossa vida movida pelo amor, não
conseguiremos corresponder ao chamado de amar.E, quando amamos, como se fosse
um resultado simultâneo, perdemos e ganhamos: perdemos a nossa fisionomia egoísta,
mesquinha, individualista, nos expomos seriamente, e sem deixar o critério da
nossa personalidade, da nossa individualidade, ganhamos a fisionomia de Deus,
os seus trejeitos, os seus sentimentos, a sua largueza em amar, o seu coração
transbordante de bondade, de compaixão e de misericórdia. Se somos vocacionados
ao amor, pelo amor e no amor, seremos consagrados pela misericórdia para
transmiti-la ao mundo tão carente desta afeição. Carência que se manifesta no
pobre, no excluído, no desconhecido, no filho, no cônjuge, no doente, no
desesperançado, no atribulado, no sedento e faminto de Deus, enfim naqueles a
quem Deus põe no meu caminho para que, através deste, possa dar o meu ‘sim’ a
Quem me chama.
Dizem que uma repórter
norte-americana solicitou uma entrevista com Madre Teresa de Calcutá, e ambas
se acertaram para que aquele encontro se desse onde o ‘Anjo Bom da Índia’
lidava com os seus doentes. Quando aquela repórter chegou ao local, deparou-se
com a delicada religiosa que, pacientemente, cuidava de um homem, cujos
ferimentos exalavam um péssimo odor. Discretamente, a jornalista observou com
presteza o zelo da franzina freira, que não se incomodava com o mau-cheiro.
Terminados os cuidados, Madre Teresa fitou com ternura para a que ia entrevistá-la
e disse: “Podemos começar”. E, num sobressalto, a repórter não se comediu: “Eu
não faria isso nem por um milhão de dólares”. E Madre Teresa: “Eu também não”.
Diante desta cena que parece interrompida, inacabada, o que quis dizer Madre
Teresa aquela jornalista? Foi o amor de Cristo que a impulsionou a fazer tudo
aquilo, não outro interesse. Na realidade, a religiosa indiana não via ali,
estirado diante de si, um homem, mas o próprio Deus. O segredo de corresponder
à vocação no quotidiano está no fato de enxergar Deus em tudo aquilo que
fazemos, ainda que seja numa ínfima atividade, que não nos diga muito. Isso é o
que podemos, com justeza, chamar de ‘constância no amor’. Esta ideia pode ainda
ser confirmada com uma máxima de Santa Teresinha do Menino Jesus: “Nada é
pequeno onde o amor é grande”.
No Evangelho de São Mateus,
exatamente no momento em que Jesus envia os seus discípulos à missão,
encontramos: “De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10,8). Esta ordem
do Senhor cabe-nos certeiramente, porque somos cumulados, presenteados pelo
amor de Deus, que jamais deve ficar retido, trancafiado em nós, mas deve ser
repassado, principalmente de acordo com o nosso estado de vida: no sacerdócio,
na vida consagrada, no matrimônio e na família. Não nos resguardemos em amar;
não nos furtemos de transmitir o precioso dom do amor, para não corrermos o
risco de mofar, de embolorar o nosso coração, corroendo a nossa fidelidade na
resposta a Deus.
Dom
Dulcênio Fontes de Matos
Bispo
Diocesano de Palmeira dos Índios/AL
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