HOMILIA DE DOM DULCÊNIO NA FESTA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO
HOMILIA PARA A MISSA SOLENE DE NOSSA SENHORA DO AMPARO
(Catedral Diocesana de Palmeira dos Índios, 01 de janeiro de 2014)
Saudações,
O Código de Direito Canônico, ao referir-se ao múnus episcopal do
ensino, entrevê que, numa Igreja particular, é o Bispo o primeiro catequista,
Ele, que representa o Cristo Mestre, tem o primeiro encargo de anunciá-Lo,
conduzindo o rebanho do Senhor a ele confiado para a sã doutrina. Somos
guardiães do Depósito da Fé, ou seja, de tudo quanto a Igreja piamente crê e
apregoa como verdade de fé. O Reverendíssimo Padre Thiago Soares,
compartilhando como presbítero deste múnus a priori episcopal, teve a brilhante
ideia de nortear a Festa de Nossa Senhora do Amparo deste ano por um viés
obviamente mariano, porém com uma metodologia catequética.
Quando
rezamos a Ave-Maria, no segundo trecho desta conhecidíssima oração, o fiel diz:
“Santa Maria, Mãe de Deus”. Logo, com o atributo da maternidade divina cabível
à Maria Santíssima, aclamamo-la com uma titulação raiz: tudo o que Maria é se
deu por conta desta eleição divina em sua vida: a de ser a Mãe do Filho de
Deus, e, portanto, Mãe do próprio Deus. Dizemos repetidas vezes que Maria é Mãe
de Deus. Mas, será que somos atentos e sabedores do porquê desta nossa
afirmação? Pois bem, queridos irmãos, nesta solenidade de hoje, em que a Igreja
em todo o mundo celebra Santa Maria, Mãe de Deus, quero refletir, em breves
palavras, acerca deste dogma: o da maternidade divina de Maria.
Historicamente, recorro
em primeiro lugar ao Concílio de Niceia em 325. Aí, temos como máxima definição
a afirmação da divindade de Jesus, cujo componente estabelece-se e estampa-se,
posteriormente, no conhecido Credo Niceno-Constantinopolitano. Desta forma,
doutrina o Concílio de Niceia: “[Jesus Cristo] nascido unigênito do Pai, isto é
da substância (mesma) do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, um em substância com o Pai [o que em grego se diz homousion]
(Dz 125). Consequente e indiretamente, afirma a
maternidade divina da Virgem Maria, enquanto que Jesus se encarnou e se fez
homem em seu seio. Entretanto, foi o Concílio de Éfeso, em 431, que,
claramente, pondo fim às problemáticas acerca da aceitação da maternidade
divina de Maria, declarou: “Se alguém não confessa que o Emanuel é Deus no
verdadeiro sentido da palavra, e que por isso a Santa Virgem é Mãe de Deus
porque gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus, seja excomungado” (Dz 252).
O dogma da maternidade divina de Maria significa que a ação geradora de Maria
possui como finalidade a Pessoa divina do Verbo. O fim da geração humana é
sempre uma pessoa; não havendo em Cristo mais pessoa que a Pessoa Divina, se
segue que Maria é Mãe de Deus, não mãe de um homem (entendendo homem como
pessoa humana). O Concílio Vaticano II, no século XX, exatamente na
Constituição Dogmática Lumen Gentium,
ressalta a missão de Maria como serva e seu papel em conformidade com o do
Filho, concomitante, coloca a maternidade divina no mistério da Igreja,
enquanto que, utilizando-se de um pensamento de Santo Ambrósio, Maria é figura
da Igreja em ordem à fé, à caridade e à perfeita união com Cristo. O paralelo
de Maria Virgem e Mãe com a Igreja Virgem e Mãe está belissimamente colocado nos
números 63 e 64: “Porque, acreditando e obedecendo,
gerou na terra, sem ter conhecido varão, por obra e graça do Espírito Santo, o
Filho do eterno Pai; nova Eva, que acreditou sem a mais leve sombra de dúvida,
não na serpente antiga, mas no mensageiro celeste. E deu à luz um Filho, que
Deus estabeleceu primogênito de muitos irmãos (Rm 8,29), isto é, dos fiéis,
para cuja geração e educação Ela coopera com amor de mãe. Por sua vez, a Igreja que contempla a sua santidade
misteriosa e imita a sua caridade, cumprindo fielmente a vontade do Pai, torna-se
também, ela própria, mãe, pela fiel recepção da palavra de Deus: efetivamente,
pela pregação e pelo Batismo, gera, para vida nova e imortal, os filhos
concebidos por ação do Espírito Santo e nascidos de Deus. E também ela é
virgem, pois guarda fidelidade total e pura ao seu Esposo e conserva
virginalmente, à imitação da Mãe do seu Senhor e por virtude do Espírito Santo,
uma fé íntegra, uma sólida esperança e uma verdadeira caridade”.
Meus
irmãos e irmãs, a Igreja para chegar a tal conclusão não ‘inventou’ (utilizando
um termo que muitos fazem uso) tal verdade, mas a recebeu na Revelação Divina,
na Palavra de Deus oral (Tradição) e escrita (a Sagrada Escritura). E por isto
a ensina. A Tradição, desde o começo da Igreja, testifica: Maria é a Mãe de
Deus. Já antes do Concílio de Éfeso, a doutrina da Divina Maternidade de Nossa
Senhora é afirmada de modo equivalente já por Santo Inácio de Antioquia, no
século II: “Nosso Deus Jesus Cristo foi gestado por Maria em seu seio conforme
a dispensação de Deus” (Ad Eph. 7,2).
Tal testemunho se une aos dos contemporâneos do antioqueno Santo Inácio, São
Justino e Santo Irineu já ensinam acerca da Mãe de Deus. No terceiro século
dirá Santo Atanásio: “Aquele Verbo que foi engendrado do Pai, de maneira
inefável, inexplicável, incompreensível e eterna, o mesmo foi engendrado, no
tempo, da Virgem Mãe de Deus, Maria” (De
incarnatione Verbi, 8; PG 26,996). A expressão “Mãe de Deus” (Theótokos) é usada por muitos outros
autores sagrados da antiguidade: Alexandre de Alexandria, os santos irmãos
Basílio Magno e Gregório de Nissa, São Gregório de Nazianzo, Santo Ambrósio,
Santo Agostinho, e, a partir destes, por tantos pensadores cristãos que, desde
a Patrística vêm enriquecendo a fé da Igreja com as suas brilhantes
reflexões.
Na Bíblia, várias são as passagens que
nos acenam e nos estabelecem na fé deste dogma. Segundo Gálatas 4,4, que a
Igreja nos propõe como Segunda Leitura de hoje, temos: “quando chegou a
plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher”. A fórmula
“Deus enviou seu Filho” alude à pré-existência do Filho, que é enviado ao mundo
pelo Pai, considerando então o Filho em sua essência divina. Esse Deus-Filho é
o fim da ação generativa da mulher: Maria que gera Deus pré-existente em sua
natureza divina e o concebe homem na história. Já em Romanos 9,5 lê-se: [Dos
israelitas] “descende Cristo, segundo a carne, o qual é, sobre todas as coisas,
Deus bendito para sempre”. Cristo, que é Deus, procede dos israelitas segundo a
carne. Assim, Cristo Deus é engendrado segundo a carne, dos israelitas, o que
historicamente quer dizer “de Maria”. Cristo Deus é gerado em Maria. No
Evangelho de Lucas 1,35 encontra-se escrito: “Respondeu o anjo a Maria: ‘O
Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua
sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus’” (Lc
1,35), aludindo ao Espírito Santo como força que realiza a concepção no seio de
Maria. A partir daí, o seio da Virgem se converte em tabernáculo de Deus, pela
presença do mesmo Deus. Por isso, o que nascerá de Maria, será chamado “Filho
de Deus”, Deus em sentido estrito.
No Antigo Testamento, temos a Arca da
Aliança. Primeiramente resguardada na Tenda da Reunião e no Templo de Jerusalém
até ser roubada quando da invasão babilônica, a Arca, cujo interior
recepcionava as pedras do Decálogo dentre outros objetos caros à história e à
religião de Israel, significava, para o culto judaico, a presença do próprio
Deus. No Novo Testamento, São João, revelado em visão, contempla outra arca,
que não continha em seu bojo uma representação da divindade, mas Deus mesmo. Se
toda a Torá encontra-se compendiada nas tábuas dos Dez Mandamentos, custodiada
pela Arca da Aliança, Maria, a Arca da Nova e Eterna Aliança carrega não um compêndio
talhado em pedras, mas o próprio Verbo encarnado, Palavra de Deus feito carne:
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada
foi feito […] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,1-3.14). Mãe do
Verbo de Deus, Mãe de Deus!
São Luís Maria de Montfort afirmou
poeticamente: “Deus Pai
juntou todas as águas e chamou-as ‘mar’. De igual modo reuniu todas as graças e
chamou-as ‘Maria’”. Maria,
ornada com todas as virtudes do céu e da terra, por isto “cheia de graça”, é
escolhida para ser a Mãe de Deus porque já o havia concebido, há muito, no seu
peito virginal. Neste sentido, concorre-nos Santo Agostinho ao dizer: “De valor
algum teria sido para ela a própria maternidade divina, se ela não tivesse
levado Cristo no coração com um destino mais afortunado de quando o concebeu na
carne” (De Sancta Virginitate, 3,3).
O Santo Bispo de Hipona tece tal comentário como se interpretando a passagem em
que Jesus elogia veementemente Maria: “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai
que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,50; Mc
3,34-35; Lc 8,21). E não diferentemente disto, o Evangelho desta Liturgia de
hoje confirma: “Quanto a Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre
eles no seu coração” (Lc 2,19), pois aquela que o faz corporalmente já tem o
santo, o bendito de costume de fazê-lo com a inteireza de sua alma, de seu
espírito, unido ao Espírito Santo de Deus que a engendra, não somente no
ventre, mas o faz, primariamente, no seu coração e no seu ser.
“Abriu-se
o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento […]
Então apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo
dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap 11,19a.12,1-2). Se o
Templo de Deus se abriu, logo, entendemos automaticamente que ele estava
lacrado; abrindo-se o Templo surge a arca da Aliança; e, após este relato, o
estupendo sinal. Podemos traduzir esta visão do Apóstolo como: O Céu, Morada de
Deus se abre, e aparece a Arca da Aliança. Esta é sinônima da presença de Deus,
não em si mesma, mas porque porta a escrita de Deus. O Céu se abre e Deus vem
habitar em Maria, a Arca, a qual, em si, não possui grande relevância se
comparado ao que aí reside, mas sua grandeza está no fato de portar em seu bojo
o próprio Deus. É por este motivo que na Ladainha de Nossa Senhora,
carinhosamente, a titulamos “Arca da Aliança”. A continuidade do texto do
Apocalipse, ao apresentar o grande sinal, faz com que tenhamos igual certeza.
Santo
Efrém, com uma profundidade teológica que lhe é peculiar, munido com a poética,
utiliza a imagem da concha com uma pérola dentro. Assim como a tradicional
lenda da origem das pérolas em uma concha através da fecundação pelo orvalho do
céu no interior desta, também Maria, concha de indizível beleza, concebeu a
pérola de valor inestimável em Seu seio com a participação direta e apenas do
céu: Jesus Cristo, nosso Salvador. Arca e concha se juntam na tentativa de
figurarem a maravilhosa concepção de Deus por uma mulher, a mais bendita dentre
todas, Maria. Aliança e pérola se unem para figurar o precioso regato do seio
de Maria: Deus que vem e estabelece-se em nosso meio; o Emanuel, o Shekkinah: Deus-conosco.
Queridos
irmãos, ao término destas nossas palavras, dirigimo-nos a Maria, Mãe de Deus, a
Senhora do Amparo, a bela concha que traz a incomparável pérola, a nobilíssima
e inviolável arca que porta Deus e no-lo oferece:
Gloriosíssima Virgem,
escolhida pelo conselho eterno para ser Mãe do Verbo Encarnado, tesoureira das
divinas graças e advogada dos pecadores, nós, os mais indignos dos vossos
servos, a vós recorremos, para que vos digneis ser nossa guia e conselho, nosso
amparo, neste vale de lágrimas. Alcançai-nos, pelos méritos do vosso Filho,
Deus e homem, o perdão de nossos pecados, a salvação de nossas almas e os meios
necessários para operá-la. Alcançai para a Santa Igreja o triunfo sobre os
inimigos e a propagação do reino de Jesus Cristo por toda a terra. Assim seja.
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