FRATERNIDADE E TRÁFICO HUMANO
“É PARA A LIBERDADE QUE CRISTO
NOS LIBERTOU”
(Centro de Pastoral Pio XII, 12
de março de 2014)
Em mais
um ano, por ocasião da quaresma, a Igreja no Brasil, no vislumbre da prática da
solidariedade com os que mais sofrem, oferece-nos uma nova edição da Campanha
da Fraternidade. Neste ano, a Igreja grita por e junto daqueles que são vítimas
do tráfico humano em suas diversas e cruéis modalidades. O tráfico humano é,
por assim dizer, uma privação da liberdade de outrem; é ainda no dizer do Papa
Francisco “uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se
dizem civilizadas”. E, se o tráfico compromete a liberdade, gostaria de, nesta
minha fala, buscar um aspecto teológico desta Campanha da Fraternidade, tendo
como fundo o tempo litúrgico por nós vivido, ou seja, a Quaresma, período
configurado como tempo forte de solidariedade, e, por isto mesmo, tempo forte
da Campanha.
Deus
cria o homem à sua imagem e semelhança. E, tecendo o homem, o Criador o dota
com uma dignidade inalienável, justamente pelo aspecto de fazê-lo à sua imagem
e semelhança. Ora, o homem criado na liberdade, posteriormente opta
pervertidamente aos planos de seu Criador é, por isto, ofuscado pelo falso aspecto
do mal, incorrendo no pecado. O mal é privação da liberdade, porque só podemos
conceber a liberdade no convívio com Deus; o mal é privação da liberdade porque
é, em sua raiz mais profunda, privação de Deus. Deus proporciona ao homem ser
quem de fato é, tal como o Ser Divino o havia sonhado. Neste sentido, a Palavra
de Deus não deixa de oferecer tantos indicativos dos caminhos que levam aliberdade,
que levam a Deus e tantos outros que derrocam o homem na miséria da escravidão
do pecado e da morte.
Mas,
por que o mal e todos os seus seguidores querem privar o homem da sua liberdade
e do seu ‘ser livre fundamental’, o próprio Deus? Porque, quando estamos em
Deus, quando somos realmente livres, somos empecilhos, obstáculos para a
propagação do reino de morte, do reino de não-vida, do reino de escravidão por
ser o reino do pecado, do mal. Este indício já nos foi oferecido pelo livro do
Êxodo: “Obcecados pelo medo dos filhos de Israel, os egípcios impuseram-lhes
uma dura escravidão e amarguravam-lhes a vida com duros trabalhos na argamassa
e na fabricação de tijolos, bem como com toda sorte de trabalhos nos campos e
todas as tarefas que se lhes impunham tiranicamente” (Ex 1,13-14). Creio que
este trecho da Palavra de Deus ilustre com justeza o porquê e o como da
escravidão que o pecado e os seus sistemas visam laçar o homem, o liberto por
Deus desde a sua criação e redenção.
A vida
do que não tem Deus é amarga é amargurada. E tanto mais é amarga e amargurada a
vida daquele que busca Deus, mas os ardis do mal o impedem de alcançá-Lo e de
alcançar a sua plena realização de ser homem. E, em um sentido mais amplo,
todos éramos escravos do pecado, tínhamos sido traficados pelo mal para as suas
astúcias, astúcias estas unidas a uma liberdade mal utilizada por parte do
homem na presunção de pensar ser Deus. E nos assevera São Paulo: “Assim também
nós, quando menores, estávamos escravizados pelos rudimentos do mundo” (Gl
4,3). Éramos menores graça até quando Cristo, nossa esperança, nossa redenção,
nossa libertação, fez-nos maduros, adultos, aptos para uma nova e superior
liberdade. E continua São Paulo: “Mas quando veio a plenitude dos tempos, Deus
enviou seu Filho, que nasceu de uma mulher e nasceu submetido a uma lei, a fim
de remir os que estavam sob a lei, para que recebêssemos a sua adoção. […]
Portanto já não és escravo, mas filho. E, se és filho, então também herdeiro
por Deus” (Gl 4,4-5.7). Se fomos criados livres à imagem e semelhança de Deus,
remidos, Cristo nos resgata nos lustra no aspecto da dignidade de imagem e semelhança
de Deus e nos insere no próprio Deus, numa dignidade enormemente superior a que
tinha quando da queda e também quando da criação: fomos divinizados pelo Cristo.
Logo, se já era uma ofensa a Deus quando, no Antigo Testamento, pessoas eram
privadas de sua liberdade, de sua dignidade, quando eram traficadas,
maltratadas, quanto maior será o pecado contra aqueles que Cristo remiu com uma
redenção universal, pois todos os homens e mulheres de tantos lugares e épocas
são convidados a esta libertação operada por Jesus.
Na
quaresma preparamo-nos para a Páscoa. A páscoa judaica rememorava a libertação
de Israel do aguilhão dos egípcios. A Páscoa verdadeira, a Páscoa de Cristo por
nós celebrada todos os anos como um evento atual é memória ativa da libertação
do pecado, do mal que leva à morte, à anulação do nosso ser. Por isso, faz-se
mormente a quaresma. É no espírito de conversão propiciada pelo exercício da
oração, da esmola e da penitência que angariaremos as forças para acontecer em
nossa vida a páscoa sintonizada com a grande Páscoa de Cristo, porque aquela
desta dimana. Páscoa, passagem; páscoa, libertação. E assim como somos livres
em Cristo e cada dia crescemos nesta liberdade, como gesto concreto devemos ser
sinais de libertação para o outro, para o próximo, porque devemos ser sinais do
Cristo Libertador. Quantos próximos que não conhecemos, que não sondamos ou
fazemos ideia de quem seja, e outros que conhecemos, sabemos o nome, a mazela, que
devemos levar a libertação do Cristo, porque somos Igreja, tradutora desta
liberdade oferecida por Jesus; liberdade integral, fundamental, porque quer
libertar o homem por completo e esta liberdade é raiz para tantas outras das
quais necessita.
Infelizmente,
observamos também que muitos dos que se dizem cristãos são cúmplices, senão
artífices, das escravidões do outro que como eu é imagem e semelhança de Deus.
Muitos que se dizem seguidores de Cristo, filhos da Igreja, amantes do bem são
embaixadores do mal na vida de homens, mulheres, crianças, jovens, adultos,
idosos, indefesos, estrangeiros, trabalhadores. Quantos cristãos estão ao
dispor da propagação e implantação de diversos cativeiros: injustiças, drogas,
violência, prostituição, trabalhadores indevidamente explorados expostos a
infames condições, pessoas cujos órgãos são extraídos ilegalmente para comércio
e para outros fins eticamente errados? Será que não se conta de que estão a
serviço do poder das trevas, do poder do pecado e da morte? Será que são
cristãos apenas no nome esquecendo-se da sua missão de, como Cristo, promover a
vida em abundância (cf. Jo 10,10)?
Esta
dimensão social da Campanha da Fraternidade só é possível de ser executada
graças à sua raiz teológica. Se nos bastássemos apenas em um destes dois
aspectos a Campanha da Fraternidade estaria manca. Para nós, homens e mulheres
de Igreja, se promovermos a vida sem o aspecto teológico, cristão, estamos
realizando um mero serviço filantrópico. Tal encargo já é de outras
instituições como governo e ONG’s, o que não gera fraternidade, mas uma
beneficência. Se apenas nos bastássemos nas reflexões, ainda que teológicas,
faltar-nos-ia a prática cristã, sal e luz de Cristo para o mundo. Palavras de
per si não geram fraternidade, mas discursos. E os discursos voam, se perdem
com o tempo, são esquecidos se não acompanhados de práticas de vida. Unamos,
pois, palavras aos atos e vice-versa... geremos fraternidade. Ser fraterno é
estar próximo de alguém, no nosso caso dos sofredores, dos que são lesados em
sua liberdade, em sua dignidade. Ser fraterno é ser irmão; é ser da mesma
família, consanguíneo. Sim, somos consanguíneos pelo sangue de Cristo, que
morreu por todos, no intento de inserir todos na família de Deus, embora muitos
rejeitem tal pertença e não queiram ser introduzidos nesta estirpe divina. O
sangue de Cristo faz-nos irmãos; faz-nos próximos; faz-nos sentir a dor do
outro em comiseração; faz o sofredor ser Cristo encarnado no hoje de nossa
história e de nossa sociedade: “Porque tive fome e me destes de comer; tive
sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes;
enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. […] todas as vezes
que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que
o fizestes” (Mt 25,35-36.40), disse Jesus.
Como
Pastor Diocesano, desejo que a partir daqui, promovamos fraternidade; provamos
liberdade; promovamos o Cristo no que sofre, no escravizados, no traficado, no
lesado em seus direitos e em suas garantias. Se não tivermos este firme
propósito de gesto concreto, o que estamos fazendo aqui senão perdendo o nosso
tempo? Senão escondendo o Evangelho de Cristo, doador de vida e liberdade por
ser Palavra que liberta e salva, Palavra que se fez carne e fez história na
nossa história, e continua a fazê-la? Pois, como disse o Papa Francisco em sua
Mensagem para a Campanha da Fraternidade 2014: “Não
é possível ficar impassível, sabendo que existem seres humanos tratados como
mercadoria!”
Que
Deus, em sua infinita bondade nos ajude com as luzes do Seu Espírito. E que
este tempo forte de Quaresma seja ocasião favorável para, além da prática da
penitência e da oração, como Igreja, a vivamos o exercício da caridade, da
esmola, de gestos concretos que façam valer na vida de tantos o esplendor da
liberdade de Cristo.
+ Dom Dulcênio Fontes de Matos
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