A BÍBLIA É A PALAVRA DE DEUS?


Joelder Pinheiro Correia de Oliveira*

            Em inumeráveis paróquias do Brasil entoa-se um cântico neste mês de setembro: “A Bíblia é a palavra de Deus”, cabe-nos uma pergunta: de fato, a Bíblia é A palavra de Deus? Poderíamos aprofundar ainda mais: somente a Bíblia é palavra de Deus? Ante estas interpelações esboçaremos algumas inferências, anuindo, destarte, com aquilo que nos ensina a Igreja.
            O Evangelho segundo João nos revela quem é verdadeiramente A Palavra de Deus: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (1,14), a Palavra é o Filho, consubstancial ao Pai in aeternum (eternamente) e consubstancial a nós por sua encarnação no seio da Virgem Maria (VD 7), e não um livro. Nós cristãos não somos a “religião do Livro” (VD 7), mas seguimos uma Pessoa: Jesus Cristo! Nele manifesta-se a plenitude da revelação de Deus; tudo aquilo que o Antigo Testamento aludia em sinais prefigurativos, chega ao zênite na Pessoa de Jesus; Ele rompe o silêncio do mistério Trinitário, sem, contudo, esgotá-lo, desvelando-se e levando os homens à comunhão do amor pelo conhecimento do Pai (Jo 15,15) e pelo envio do Espírito Santo que guia à plena verdade (Jo 16,13). Cônscios de que o Filho e somente Ele é a Palavra eterna, podemos, deveras, entender que na Tradição e na Sagrada Escritura encontramos de modo fidedigno esta Palavra de Deus, pois elas a contêm embora não a esgotem.
             Com a ‘Reforma’ Protestante, em 1517, Lutero apregoou uma máxima: sola Scriptura (só a Escritura), e desde então seus sequazes insistem em asseverar que somente na Bíblia encontramos a palavra de Deus, o que é inconcebível e negado pela própria Escritura (Jo 20,30-31; 2Ts 2,15) e pelo estudo aprofundado da história. A Tradição precede a Escritura: os estudiosos apontam que as primeiras páginas do Antigo Testamento foram escritas ou no século X a.C. ou no VI a.C., os judeus viveram séculos somente com a tradição oral, tipicamente patriarcal. No Novo Testamento as primeiras páginas só foram escritas por volta do ano 50 d.C. com a 1ª epístola aos Tessalonicenses (cerca de vinte anos entre a Páscoa de Jesus e o texto), o evangelho segundo João só foi escrito por volta do ano 95 d.C. (cerca de sessenta anos após a Páscoa), as comunidades primitivas viveram dezenas de anos somente com a Tradição oral, por meio da pregação dos Apóstolos.
            Alguém poderia dizer que a Sagrada Escritura findou a Tradição, mas isso é óbvio que não, pois o Espírito Santo não agiu somente nos autores inspirados e depois se retirou. A própria Escritura contesta isso: “Há, porém, muitas outras coisas que Jesus fez. Se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam” (Jo 21,25), deixando de lado a hipérbole literária, podemos corroborar que as Letras Sagradas não invalidam a ação continuada do Espírito para além da Escritura, pois Ele continua agindo e conduzindo a Igreja ao conhecimento da verdade (Jo 8,32). “A Tradição viva é essencial para que a Igreja, no tempo, possa crescer na compreensão da verdade revelada nas Escrituras” (VD 17).
            A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura não são opostas ou discordantes, pois “Ambas têm a mesma origem divina, formam de certo modo uma unidade e tendem para o mesmo fim” (DV 885). Pois a Tradição não é fruto de invenções ou de idealismos humanos, mas é herança: “Foi confiada aos apóstolos pelo Cristo Senhor e pelo Espírito Santo e transmitida na íntegra a seus sucessores, que a conservam fielmente em sua pregação, explicam-na e a propagam” (DV 885). Em resumo: a Bíblia não tem uma origem alheia à Igreja, como se tivesse surgido do nada ou descido prontinha do céu. Ela caminha intrinsecamente ligada com a Tradição, e ambas tratam da mesma Revelação e têm o mesmo conteúdo de salvação.
            Um último aspecto a ser tratado é a importância do Magistério vivo da Igreja, que é, grosso modo, um serviço, “exercido em nome de Cristo” (DV 887), para interpretação autêntica da palavra de Deus e, assim, poder-se propagar fiel e ininterruptamente a mesma verdade revelada. Outro colossal dano da reforma protestante foi a ideia da livre interpretação da Sagrada Escritura, sem o aval do Magistério (2Pd 1,20), daí entendemos a proliferação de tantas denominações cada uma pregando suas ideias, muitas vezes opostas e contraditórias em relação ao sentido último e salvífico do texto sagrado (Ipsissima Verba Dei). Incontáveis vezes a Bíblia é usada para arrefecer consciências ou endossar sentimentalismos, visando benefícios meramente materiais. Reconhecemos, deveras, que existem denominações religiosas que, mesmo separadas da Igreja, buscam com seriedade e retidão a compreensão, ainda que insuficientes em alguns aspectos, da verdade salvífica; para estas não vale o que está sobrescrito sobre o mau uso da Bíblia.
            Por fim, chegamos à conclusão de que a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são palavra de Deus porque contêm a Palavra: Cristo Jesus. Quando lemos a Bíblia é Deus que nos fala; quando ouvimos a autêntica pregação, com base na Tradição, é Deus que nos fala. Neste mês dedicado à Bíblia busquemos ainda mais envolver-nos pelo amor de Deus que nos chama à conversão pelo conhecimento da Verdade.


*Seminarista do 2º ano de Teologia

Comentários